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Dança Afro-Brasileira – a arte de Mercedes Baptista.
Ao falar da dança afro, são muitas as pessoas que resolvem mentalmente sua origem: isso “veio da África”; “veio dos terreiros de candomblé”; “veio dos escravos, do tempo das senzalas”. Não está errado, mas a “solução ancestral” apaga da história sua verdadeira origem. Por dança “afro” poderíamos falar da dança de salão, que ganhou o nome de maxixe na época, dança fundamentada pelo bailarino negro Duque, da Companhia de Dança Du Chocolat – o divulgador do baile de gafieira. Na luta pela identidade do negro brasileiro são muitas as “danças afro”. Nascida e criada no movimento anti-racismo, impondo dignidade e respeito a cultura negra brasileira, brilhou a figura da bailarina Mercedes Baptista: na dança moderna afrobrasileira.
Nas pinceladas de movimento negro, em nosso foco – só as mulheres!! Claro! É o mês delas, tudo delas! No Brasil a dança negra aconteceu de modo diferente do caso norte-americano, inventores do conceito “afro”. Por muitos motivos, mas principalmente por aquele ser um país forte, na educação, na economia e na intolerância também. A facilidade de consumo ocorreu como mercado de artigos “black”, para o bem ou para o mal, um caminho na produção cultural afro. Isso ajudou-os a enfrentar uma grande dificuldade: leis racistas, de separação do convívio, com supremacia dos “brancos”. No Brasil não houve este tipo de lei após a escravidão, nem uma elite tão branca assim, mas a “raiva da cor” e ausência de respeito às leis trouxe-nos problemas parecidos, muito graves. Na cultura, porém, fomos melhores: de raiz.
Qual movimento negro brasileiro? Sim, o organizado politicamente. Porém, o movimento de afirmação cultural e religioso sempre esteve na origem, com maior destaque na população. Da escravidão aos nossos dias muito se conquistou, mas “o negro brasileiro” continua com uma dura pauta cultural: terreiros perseguidos, artigos apreendidos pela polícia, os tambores calados. Ou “comprados”, como no carnaval. É pouco comum ver uma escola de samba com base na “elite branca”, mas isso é muito visível em “rainhas de bateria”, cantores profissionais, festinhas e outras folias nobres. O racismo à brasileira é criminoso, autoritário e elitista.
No teatro de revistas, uma das vertentes apresentava espetáculos de dança, como dança de salão. Foi a companhia de espetáculos de Du Chocolat, que criou a dança do maxixe, ou como chamamos hoje em dia: dança de gafieira, ou dança de salão. Outra moda no teatro de revistas foi o trabalho em dança com alguma nudez - a dança fazia parte de peças teatrais, como musicais. Mercedes... Após ter sido doméstica e operária, foi como bilheteira de cinema que se apaixonou pelos filmes musicais - com muito filmes nacionais na época. Ao ver tantos filmes decidiu-se pela carreira: dançarina profissional. Mercedes Baptista mirou logo na elite do ballet: ingressou na escola do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
No corpo do Municipal teve aulas de balé clássico com Yuco Lindberg e Vaslav Veltchek, importantes na época. Também foi importante seu encontro com a bailarina branca Eros Volusia – com sua dança "à brasileira" foi influência certa para Mercedes. De uma família de poetas, filha de Gilka Machado, Eros Volusia foi uma referência no balé clássico misturado à arte folclórica brasileira. Tornou-se grande estrela de cinema.
Volusia aderiu ao “deslumbre negro” dos anos 30, com os primeiros congressos de valorização da cultura negra no Brasil. Suas coreografias serviram de base ao trabalho de Carmem Miranda, outra estrela da época. Era um momento de guerras na Europa e muitos refugiados foram valorizados no Brasil – pela pele branca... Uma parte disso ocorreu no mercado de dança. Para Volusia isso não fez diferença – inclusive era muito bela! De outro lado, a dança se dividia entre européias, mais "sérias", e as danças "picantes" ou "exóticas" - meio que bagunçou as danças de outras nações...
Eram danças “exóticas” aquelas identificadas por traços “selvagens”, “primitivos”. Representações árabes, ciganas, espanholas, caribenhas - as chamadas “habaneiras”, de certa forma “afro” também. Formou-se um preconceito ao contrário, já que o elemento “afro” era apreciado como quem torce por uma “coisa esquisita”. Foi nesta época que se espalhou que “todo pai de santo era bicha”, quando era apenas um corpo liberado... As mulheres na dança, inclusive, eram tidas como prostitutas na boca do povo. Não importa o lado negativo. Para o artista negro brasileiro isso era trabalho: bom e digno. Foi assim nos espetáculos do Mestre Pastinha, na capoeira. No samba, maracatu, candomblé, em outros motivos do nosso folclore foi o mesmo.
Nascida em 1921, em Campos dos Goytacazes/RJ, uma mulher negra criada no Rio, Mercedes teve o mérito de ter subido ao melhor no mundo da dança, a fina plateia do Municipal. Após um período de formação clássica, resolveu prestar concurso, mas terminou reprovada na audiência para mulheres, por discriminação racista. Sismada com isso, disputou o cargo também no grupo masculino e tornou-se a primeira bailarina negra do Teatro Municipal, em 1948. No Municipal ainda sofreu o “racismo de escolha”, posta no escanteio do elenco, um peso contra – não foi pouca a batalha de Mercedes Baptista!
Ficha técnica:
Duração: 17 minutosAno de Produção: 2005
Cidade: São Paulo/SP
Cor – Formato: Beta
Som: Stereo Prêmio Palmares de Comunicação 2005
Divulgação: FUNDAÇÃO PALMARES :
http://www.palmares.gov.br/005/00502001.jsp?ttCD_CHAVE=379
Tantos obstáculos forjaram, aprofundaram sua atitude contra um mundo de impedimentos. Após assistir a uma apresentação do Teatro Negro Brasileiro - TEN no palco do Municipal, não teve dúvidas, entrou para o grupo! Um grupo marcado pela bandeira da justiça, pela expressão contra os preconceitos raciais. Foi o encontro dessa enérgica bailarina com o movimento negro politicamente organizado.
Encabeçado por Abdias Nascimento, o TEN se dedicou a pesquisa de peças teatrais, que fossem capazes de “espelhar” as questões de uma sociedade racista, e fazer seu público refletir sobre isso. No TEN, Mercedes Baptista participou das peças Os Negros (Lima Barreto), Aruanda (Joaquim Ribeiro) e na Rapsódia Negra (Abdias Nascimento). Apesar de um estilo próximo do teatro de revista, o TEN rejeitava o tema erótico como carro chefe. Isso era considerado de baixo nível, a chanchada que expunha as mulheres aos papéis submissos e pouco dignos. Algo que Mercedes também não concordava.
O Teatro Negro Brasileiro, pesquisa e militância.
Um pouco de História: os pesquisadores Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Manuel Querino e Gilberto Freyre foram consagrados nas Ciências Sociais (sociologia e antropologia), com o mérito de terem revelado a cultura negra em beleza e riqueza de detalhes sociais. Isso ocorreu nos anos entre 1900 e 1930.
No campo da dramaturgia surgiu Abdias Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro nos anos de 1930. Um teatro crítico, militante, fiel da balança nas relações entre brancos e negros. Pelo elenco passram célebres atrizes, como Léa Garcia e Ruth de Souza.
Na fonte dos problemas raciais, o sociólogo Guerreiro Ramos considerava "patologia social do branco brasileiro" o campo das discriminações por cor no cotidiano brasileiro. E da lutas! campo onde o TEN foi considerado grande em seus objetivos e ações, na opinião do falecido Guerreiro.
Cada um desses pesquisadores originais no tema racial (o que deve incluir Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Viana) tiveram seus limites, sua época, seus modos de expressar a luta por uma sociedade mais justa, contra o racismo. Cabe ao militante negro ter a paciência de estudá-los antes de julgá-los, compará-los ao mundo atual antes de botar rótulos. Voltemos ao tema: Mercedes Baptista.
Na abertura do livro “Mercedes Baptista, A Criação da Identidade Negra na Dança”, de Paulo Melgaço Jr., há um interessante texto de Abdias Nascimento, este fundador do TEN. Ali, o autor diz que a firmeza de suas idéias, sua postura profissional, foi o alicerce para a grande Mercedes, como bailarina e coreógrafa pioneira na construção da nova “dança afrobrasileira”. A consciência de sua história de lutas, sua linha de pesquisa e uma dimensão criativa própria, diz o mestre, possibilitou a ela escapar da simples reprodução, repetição de folclore. Ou seja, a elaboração de uma dança moderna usando elementos da cultura afrobrasileira de forma pensada.
Na época do Teatro Experimental do Negro, foi organizada uma grande Convenção de negros, com militantes de vários estados brasileiros, a fim de incluir na Constituição Federal alguns dispositivos anti-racistas. Para isso, lhes foram exigidos “casos concretos”, como se a discriminação racial não existisse no Brasil. Para tornar isso visível, dois exemplos foram importantes. Foram barradas em hotéis da elite: tanto a pesquisadora Irene Diggs, como a bailarina norte-americana Katherine Dunham. Figuras negras de destaque, foram exemplos “concretos”, pegos como bandeira do TEN e da militância negra, que resultou na lei Afonso Arinos (1951).
A companhia de dança de Katherine Dunham desenvolvia uma abordagem em matrizes culturais não européias, para incrementar a dança morderna norte-america com atitudes mais criativas, de efeitos antropológicos. Para chegar a este objetivo, Dunham mergulhou na cultura religiosa dos negros da América, fora dos EUA, especialmente o vudu do Haiti. Essa abordagem de Katherine Dunham estava em total sincronia com as propostas do Teatro Experimental do Negro, dando início a uma troca muito fértil. Se o contato com Volusia foi a inspiração inicial, o aprendizado de Mercedes junto a Katherine Duncan deu fundamento ao trabalho que a consagraria no Brasil, no qual destacou as religiões afrobrasileiras.
Mercedes Baptista então se aproximou do famoso Babalorixá "Joãozinho da Goméia", baiano com terreiro assentado em Caxias/RJ. Este pai de santo foi grande divulgador do candomblé no Rio de Janeiro, suas manifestações, sua filosofia. Seu potencial de afirmação e defesa do culto baiano foi tão importante que até hoje existe um preconceito contra “terreiros” de outras procedências, que não seja “baiano”. E isso também teve efeito na pesquisa de Mercedes Baptista. Portanto, não será difícil identificar na “dança afro” sua baianidade, o que não retira o mérito de outras linhas religiosas, folclóricas ou demais danças de cunho antropológico.
A década de 1950 foi o auge da dança afrobrasileira, com sucesso total. O diálogo entre a alta cultura, o erudito cursado em universidade, pensado em teorias, rendeu-se a cultura popular. A dança afrobrasileira também concorrência, com interessante trabalho desenvolvido pelo poeta, sindicalista e militante do movimento negro, Solano Trindade. Tanto a obra coreográfica de Mercedes Baptista, dentro do TEN, como o grupo de Solano Trindade, com o Teatro Folclórico Brasileiro – TFB, são marcos na invenção da dança afrobrasileira.
Toda essa história transformou o universo das escolas de samba: passaram a existir “acadêmicos” do samba. No Quilombo de Acari Candeia cantou a educação como modo de melhoria para a população negra, que deixe de ser “rei só na folia” e “cante samba na universidade”. No barracão da Acadêmicos do Salgueiro as portas se abriram para estudiosos de belas-artes e historiadores. Deram sólidos fundamentos para as figuras de Xica da Silva (1963), Chico-Rei (1964), ou Candaces (2007). Mercedes Baptista entrou em seu auge, na concepção artística de Xica da Silva, quando pôs o povo para dançar um minueto perfeito.
Acadêmicos de Cubango também teve este deslumbre afro dos ao 60. A verde-e-branca de Niterói é nitidamente marcada por enredos “afros”, como “Afoxé” (1979), “Fruto do amor proibido” (1981), “O fruto da África de todos os deuses no Brasil de fé” (2005) e, na edição de 2008: “Mercedes Baptista: de passo a passo, um passo”. Mais recente ainda foi a participação da própria Mercedes Batista no desfile da Vila Isabel em 2009, com uma ala coreografada que levou seu nome. Se o enredo da Vila foi "Neste Palco da Folia, é Minha Vila que Anuncia: Theatro Municipal - a Centenária Maravilha” – nada mais justo que a quase centenária bailarina negra brilhasse na avenida Sapucahí.
Parabéns Mercedes, o Zine Zero Zero se curva perante sua grandiosidade!
*Também celebro ter tido aulas com o Professor de História Orlando de Barros, cujas pesquisas iluminaram este que vos digita: Poeta Xandu. Obrigado Professor!
Bibliografia Virtual:
Barros, Orlando de. Corações De Chocolat. Pesquisa sobre a Companhia Negra de Revistas, "Du Chocolat", que existiu no Brasil entre julho de 1926 e julho de 27. Foram espetáculos de apresentação da Dança do Maxixe, ou dança de salão no estilo gafieira, conhecia assim atualmente. Sobre o autor: é professor Doutor no PPG- História / UERJ Compre: vá até a editora EDUERJ, no primeiro piso do Campus Maracanã. ou pela internet sac@livreexpressao.com.br
??, Daniel. Mercedes Baptista: um passo de vanguarda no carnaval carioca, postagem de 23 de outubro, 2007. Acesso em janeiro de 2010:
??, Daniel. Mercedes Baptista: um passo de vanguarda no carnaval carioca, postagem de 23 de outubro, 2007. Acesso em janeiro de 2010:
http://velha-casa.blogspot.com/2007/10/mercedes-baptista.html
ESTEPHAN, Sérgio. Produção musical em São Paulo. O violão de Américo
Jacomino, o Canhoto: 1912-1928. /Se acabaran los otários: música e história no Brasil, Argentina e Paraguai. Artigo baseado na pesquisa de doutorado, O violão instrumental brasileiro: 1884-1924. Dissertação de mestrado, PPG- História /PUC-SP, 1999. Acesso:
http://www.anphlac.org/periodicos/anais/encontro7.pdf
Nascimento, Elisa L. e Nascimento, Abdias. Prólogo do livro Mercedes Baptista – A Criação da Identidade Negra na Dança, de Paulo Melgaço Jr., Biblioteca Fundação Palmares, 2007. Acesso: http://www.palmares.gov.br/_temp/sites/000/6/download/brasil/artigo-danca-01.pdf
Oliveira, Lúcia Lippi. A sociologia de Guerreiro Ramos in O Projeto UNESCO: 50 anos depois, UFBA, 2004. Acesso: www.ceao.ufba.br/unesco/06paper-Lippi.htm
Revista Fator Brasil
http://www.revistafatorbrasil.com/ver_noticia.php?not=60661
Foto - Medeiros, José. Mercedes Batista e Valter Ribeiro na gafieira Estudantina Musical. Rio de Janeiro. RIO DE JANEIRO / Brasil. 1960. Coleção 028, Instituto Moreira Salles.
http://acervos.ims.uol.com.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=Fotografia&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=028JMOR023.jpg&indexSearch=ID&format=full.pft&label=Mercedes%20Batista%20e%20Valter%20Ribeiro%20na%20gafieira%20Estudantina%20Musical
3 comentários:
Fico muito feliz por esse trabalho de divulgação, exaltação, pois tive o privilégio de ser aluna desta Diva, mestra , nossa em prantos beijos mil Asè
Gostei demais de saber quem foi Mercedes Batista! Com certeza irei assistir ao filme e lerei o livro. Acrescentará muito á minha pesquisa, como esse artigo. Parabéns!
o link da Mercedes, do filme dela!!
*o nosso caiu, e nem entendo pq a F.Palmares tirou do ar... vai entender. mas site é assim mesmo, muda sempre, estraga us nossos blogzinhos humildes.
- novo Link:
http://www.emdialogo.uff.br/content/bale-de-pe-no-chao-danca-afro-de-mercedes-baptista
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